A Burocracia em Angola: Entre o Peso da Herança Colonial e a Necessidade de Regras
A burocracia é um dos fenómenos mais onipresentes e, ao mesmo tempo, mais criticados na vida moderna. Em Angola, este tema é particularmente sensível, gerando um coro de queixas por parte de cidadãos e empresários que, frequentemente, se veem enredados num emaranhado de processos, carimbos e autorizações. No entanto, para compreendermos a fundo a burocracia angolana, é imperativo analisá-la para além da superfície, reconhecendo as suas desvantagens práticas, mas também as suas vantagens teóricas e a sua função essencial num Estado de Direito. Este é um sistema complexo, marcado por uma pesada herança histórica, que luta para se modernizar sem perder a sua razão de ser: organizar a sociedade através de regras.
A Herança Colonial: Uma Sombra Longa sobre os Processos
Para entender a burocracia em Angola, é impossível ignorar o peso do passado colonial. O sistema administrativo português, implantado durante séculos, era caracteristicamente centralizador, paternalista e não para a eficiente prestação de serviços à população. A máquina administrativa era um instrumento de dominação, onde a lei e o processo serviam, em primeira instância, para afirmar a autoridade do colonizador e manter a ordem.
Embora a independência, há quase meio século, tenha representado uma rutura política profunda, os processos e a mentalidade administrativa mostraram uma resiliência notória. Muitas das leis, estruturas e formalismos simplesmente foram absorvidos pelo novo Estado. O "jeito" de fazer as coisas, a cultura do despacho, a hierarquia rígida e a desconfiança na autonomia do cidadão são ecos de um tempo passado que ainda ressoam nos corredores das repartições públicas.
Esta herança manifesta-se na excessiva valorização do papel carimbado em detrimento do resultado, na lentidão dos processos decisórios e numa certa aversão ao risco e à inovação por parte do funcionário público. Em termos práticos, longe do colono no tempo, continuamos, em muitos aspetos, prisioneiros das suas lógicas administrativas, que não foram totalmente desmontadas e reformadas para servir uma nação soberana e dinâmica.
As Desvantagens: O Custo da Ineficiência
É neste contexto que as desvantagens da burocracia angolana se tornam mais visíveis e penalizantes para o desenvolvimento do país.
- Entrave ao Desenvolvimento Económico: A morosidade na criação de empresas, na obtenção de licenças de construção, na aprovação de projetos de investimento ou no desalfandegamento de bens é um dos maiores obstáculos à atração de investimento, tanto nacional como estrangeiro. O tempo é dinheiro, e o tempo perdido em processos burocráticos é um imposto invisível que sufoca o empreendedorismo e a competitividade.
- Fomento à Corrupção: Uma burocracia complexa, lenta e opaca cria o ambiente perfeito para a proliferação de práticas corruptas. Quando o caminho legal é demasiado árduo, os cidadãos e as empresas são tentados a encontrar "atalhos", perpetuando um ciclo vicioso que corrói a ética e a confiança nas instituições.
- Desumanização do Serviço Público: O cidadão comum, ao procurar um documento de identidade, uma certidão ou um simples atestado, muitas vezes sente-se não como um utente a quem se presta um serviço, mas como um suplicante perante uma autoridade inquestionável. A relação deixa de ser "Estado a servir o cidadão" para se tornar "cidadão a servir o Estado", invertendo por completo o princípio basilar de uma administração pública moderna.
- Ineficiência e Desperdício de Recursos: A multiplicação de procedimentos desnecessários consome tempo, papel e horas de trabalho de forma improdutiva. Esta ineficiência representa um gigantesco desperdício de recursos humanos e financeiros que poderiam ser canalizados para áreas prioritárias como a saúde, a educação ou as infraestruturas.
As Vantagens: A Teoria por Trás do Formalismo
Apesar de todos estes problemas, é um erro condenar a burocracia em bloco. O seu modelo ideal, tal como concebido pelo sociólogo Max Weber, apresenta vantagens fundamentais para qualquer sociedade que se pretenda organizada.
- Imparcialidade e Universalidade: Em teoria, a burocracia deve tratar todos os cidadãos de acordo com regras predefinidas e iguais para todos, sem "afeições ou aversões". O processo, por mais moroso que seja, visa impedir a arbitrariedade e o favoritismo, subordinando o poder discricionário do funcionário à lei.
- Previsibilidade e Segurança Jurídica: Um sistema burocrático estabelecido permite que os cidadãos e empresas saibam, antecipadamente, quais os passos a seguir para alcançar um determinado objetivo. Esta previsibilidade é a base da segurança jurídica, essencial para o planeamento de negócios e para a vida em sociedade.
- Organização e Controlo: Num país de grandes dimensões e complexidade como Angola, a burocracia fornece uma estrutura para organizar a ação do Estado, garantir o controlo sobre os gastos públicos e assegurar que as políticas são implementadas de forma coerente em todo o território.
Conclusão: A Burocracia como Defensora de uma Sociedade de Regras e Prioridades
Chegamos, assim, ao cerne da questão. O problema em Angola não é a existência da burocracia, mas a sua disfunção. A nossa luta não deve ser para eliminar as regras, mas para as modernizar, simplificar e torná-las eficientes. A herança colonial deixou-nos o pior dos dois mundos: o formalismo excessivo sem a eficiência, e a rigidez sem a imparcialidade total.
A burocracia, no seu sentido mais nobre, é absolutamente crucial porque é o alicerce de uma sociedade de regras e prioridades. Sem ela, regressaríamos à lei do mais forte, onde o capricho individual se sobreporia ao interesse coletivo, e onde não haveria transparência nem accountability na gestão da coisa pública. As regras, por mais incómodas que possam parecer, são a nossa defesa coletiva contra o caos, o arbítrio e a injustiça.
O desafio que se coloca a Angola, portanto, não é burocracia versus ausência de burocracia. É burocracia disfuncional versus burocracia inteligente. É a transição de uma burocracia de controlo, herdeira do passado, para uma burocracia de serviço, orientada para o cidadão. Isto passa pela desmaterialização de processos, pela simplificação legislativa, pela formação ética dos funcionários e pela implementação de uma cultura de avaliação de resultados.
Em última análise, uma burocracia moderna e eficiente não é inimiga do desenvolvimento; é a sua guardiã. Ela assegura que os recursos são aplicados conforme as prioridades nacionais definidas, que os direitos dos cidadãos são protegidos por regras claras e que o progresso do país assenta em bases sólidas e previsíveis, e não na volatilidade de interesses pessoais. Corrigir o rumo da nossa administração pública é, pois, um dos empreendimentos mais urgentes e nobres para a construção da Angola que todos almejamos: próspera, justa e verdadeiramente soberana.
Vanda Santos - Funcionária Pública - Luanda - Angola